Numa semana agitada para o setor energético, logo após o anúncio da intenção de troca do presidente da Petrobras e consequente derretimento do valor das ações da empresa, o Palácio do Planalto encaminhou ao Congresso Nacional a MP 1031/21, cujo principal objetivo é abrir caminho para a privatização da Eletrobras. Embora haja, no momento, dois Projetos de Lei tratando do mesmo assunto no Congresso, o Governo Bolsonaro decidiu tentar um caminho mais curto e apostar suas fichas por meio de uma Medida Provisória, cuja solução pode ser muito mais rápida.
A proposta sugere que o modelo de privatização da Eletrobras deverá ocorrer por meio de aumento da oferta de ações no mercado, de forma que a União terá sua participação acionária reduzida e passará a ser acionista minoritária. A União poderá também promover oferta pública de ações de sua propriedade.
Esse movimento de capitalização tende a atrair interessados uma vez que assegura aos concorrentes a renovação dos Contratos de Concessão para as usinas hidrelétricas da Eletrobras alcançadas pelo regime de cotas criado pela Lei nº 12.783 (ex-MP 579/12), alterando esses ativos para Produtor Independente de Energia – PIE, de forma que eles deixarão de comercializar obrigatoriamente sua energia a um preço (muito baixo!) fixado pela Aneel para negociá-la no mercado livre ou regulado, conforme sua conveniência. Além disso, fica garantida a prorrogação do Contrato de Concessão da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.
Com essa mudança, o Contrato de Concessão da estatal passará a ter um valor adicionado, a ser pago pelo agente de mercado que vier a assumir seu controle acionário. A MP propõe que metade desse valor adicionado ao Contrato seja revertido à modicidade tarifária, por meio de sua destinação à Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, responsável pelo custeio de vários subsídios presentes nas tarifas de energia elétrica. O restante do valor adicionado dos novos Contratos de Concessão deverá ser destinado à União, na forma de bonificação de outorga, cabendo ao Conselho Nacional de Política Energética – CNPE definir o valor adicionado pelos novos Contratos de Concessão de Geração de Energia Elétrica e fixar os valores a serem destinados à CDE e à União.
A MP traz também a exigência de modificação no Estatuto Social da Eletrobras para que fique limitado o poder de voto de acionistas a 10% do capital votante e ainda para que fique proibida a realização de acordos de acionistas para o exercício de direito de voto, salvo para a formação de blocos com número de votos inferior ao limite de dez por cento do capital votante; e, por fim, para a criação de uma modalidade de ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União, que dará o poder de veto na hipótese de alterações no Estatuto Social. Com esses artigos, o governo anuncia que pretende incentivar a competição e inibir eventual concentração de mercado.
Uma condicionante é a exigência de reestruturação societária para manter sob controle da União as empresas Eletronuclear e Itaipu Binacional. Essas duas empresas, que compõem o grupo Eletrobras, não podem ser privatizadas por questão constitucional e por força do acordo da Itaipu Binacional, respectivamente. Há a possibilidade de a União criar uma nova empresa estatal em que possa alocar essas duas empresas. O BNDES ficou com a incumbência de estudar essa solução, que deverá ainda definir o responsável pela gestão dos contratos de financiamento com recursos da Reserva Global de Reversão – RGR celebrados até 2016, atualmente sob gestão da Eletrobras, bem como a administração do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica – Procel.
Num pacote de contrapartidas regionais, a MP destina o valor de R$ 350 milhões para a revitalização do Rio São Francisco. As ações e projetos financiados por esses recursos devem ter foco na recarga das vazões afluentes e no aumento da flexibilidade operativa dos reservatórios, sem prejudicar o uso prioritário e o uso múltiplo dos recursos hídricos. Institui também a possibilidade de destinação, ao operador da Transposição do São Francisco, de 78,4 MWmédios pelo prazo de vinte anos, contados a partir de 2022, pelo preço de R$ 80/MWh, corrigido pelo IPCA.
Na mesma linha, propõe que a concessionária de Tucuruí aporte R$ 295 milhões de reais anuais, pelo prazo de dez anos, para o desenvolvimento de projetos na Amazônia Legal. Para a revitalização dos recursos hídricos das bacias hidrográficas das usinas de Furnas, destina R$ 230 milhões de reais anuais, pelo prazo de dez anos. Destina um vultoso valor, limitado a R$ 3,5 bilhões, para a cobertura de montantes não reembolsados pela Conta de Consumo de Combustíveis – CCC, referentes ao consumo de combustível na Região Norte. Finalmente, mantém o pagamento da contribuição associativa ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica – Cepel, por um prazo de quatro anos, período a partir do qual o CEPEL deve encontrar novas fontes de recursos.
Não é de hoje que os governos tentam privatizar a Eletrobras. Dessa vez, igualmente, não é, e nem será, tarefa fácil. A própria MP, em seu texto original, ao propor uma série de contrapartidas financeiras para algumas regiões do país dá a ideia do que pode acontecer nos próximos meses. O governo terá pela frente uma intensa rodada de negociações no legislativo. Inúmeras emendas já foram apresentadas e deverão ser apreciadas pelo relator na Comissão Mista e posteriormente nas duas casas legislativas, quando enfim seu texto final deverá seguir para a sanção/veto presidencial, caso consiga cumprir todo o rito de tramitação em 120 dias.
Por outro lado, o apetite do mercado para a aquisição do controle acionário da empresa parece ser grande. Estima-se que o valor adicionado pode superar a cifra de 50 bilhões de reais. E não é pra menos. A empresa é um gigante do setor, aliás, é o gigante do setor. Tem quase 100% de sua geração na modalidade renovável (sonho de consumo mundial) e detém a maior malha de transmissão do Brasil, esse país continental.